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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

SÍNDROME ALCOÓLICA FETAL

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síndrome alcoólica fetal

Síndrome alcoólica fetal: saiba como prevenir e tratar

O último dia 9 foi destinado, mundialmente, à prevenção da Síndrome Alcoólica Fetal (SAF). A SAF foi formalmente descrita pela primeira vez em 1973 por Jones e colaboradores, que relataram um grupo de características clínicas observadas em oito crianças nascidas de mães alcoólatras crônicas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), desde que o termo foi cunhado há 46 anos, a SAF tornou-se lentamente reconhecida como um problema de saúde pública.

Sobre a síndrome alcoólica fetal

De acordo com o “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais quinta edição” (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders fifth edition – DSM-5) da Academia Americana de Psiquiatria (American Psychiatry Association – APA), o álcool é um teratógeno neurocomportamental e a exposição pré-natal a ele provoca efeitos teratogênicos no desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) e também na função subsequente.
Os transtornos do espectro alcoólico fetal (TEAF) incluem um continuum de distúrbios que ocorrem em crianças como resultado do consumo de álcool pelas mães durante a gravidez.

A SAF representa o extremo mais grave dos TEAF, podendo culminar no óbito fetal. Pacientes com SAF podem ter características faciais anormais, atrasos de crescimento, alterações no SNC, além de dificuldades de aprendizado, memória, atenção, comunicação, visão ou audição. Um misto destas complicações pode ocorrer. Pacientes com SAF, inclusive, costumam ter dificuldades na escola e problemas de relacionamentos.
Epidemiologia
uso de álcool durante a gravidez é comum em muitos países e, consequentemente, a SAF é relativamente prevalente. Em recente revisão sistemática e metanálise, Popova e colaboradores (2017) observaram que a prevalência global de uso de álcool durante a gestação foi estimada em 9,8% (IC95% 8,9-11,1) e a prevalência estimada de SAF na população em geral foi de 14,6 por 10.000 pessoas (IC95% 9,4–23,3). Os autores também estimaram que uma em cada 67 mulheres que consumem álcool durante a gravidez pode dar à luz uma criança com SAF, o que significa cerca de 119.000 crianças nascidas com SAF no mundo a cada ano.
No Brasil, estudos realizados com metodologias variadas mostram uma estimativa de frequência de consumo de álcool em aproximadamente 10 a 40% das gestantes.
Quadro clínico
A SAF é caracterizada pela presença de alterações dos traços faciais, deficiências no crescimento e disfunções do SNC. As principais recomendações para o diagnóstico da SAF de acordo com o guideline proposto por Landgraf e colaboradores (2013) encontram-se no Quadro 2.
Quadro 2: Principais recomendações para o diagnóstico da SAF.
Recomendação 1Para o diagnóstico da SAF, as anormalidades devem estar presentes nas quatro categorias de diagnóstico:
1. Anormalidades no crescimento;
2. Anormalidades faciais;
3. Anormalidades do SNC;
4. Exposição intrauterina confirmada ou não confirmada ao álcool.
Sempre que os serviços de saúde/suporte são contactados, uma criança com anormalidades em qualquer uma dessas categorias deve ser investigada (ou encaminhada para investigação) das outras três categorias de diagnóstico.
Recomendação 2Para o cumprimento do critério “anormalidades no crescimento”, pelo menos uma das seguintes anormalidades, adaptados à idade gestacional, idade e sexo, devem ser documentados a qualquer momento:
1. Peso ao nascer ou peso corporal ≤ 10º percentil;
2. Comprimento ao nascer ou altura  ≤ 10º percentil;
3. IMC ≤ 10º percentil.
Recomendação 3Para o cumprimento do critério “anormalidades faciais”, todas as três anomalias faciais devem ser  documentadas a qualquer momento:
1. Comprimento curto da fissura palpebral (≤ percentil 3);
2. Filtro labial suave (grau 4 ou 5);
3. Lábio superior fino (grau 4 ou 5).
Recomendação 4Para o cumprimento do critério “anormalidades do SNC”, pelo menos um dos seguintes deve ser documentado:
1. Anormalidades funcionais do SNC;
2. Anormalidades estruturais do SNC.
Recomendação 5Para o cumprimento do critério “anormalidades funcionais do SNC”, deve ser documentada pelo menos uma das seguintes anormalidades, inadequadas para a idade e não apenas explicadas pelo contexto familiar ou pelo ambiente social:
1. Inteligência global, pelo menos, dois desvios padrão abaixo da 
Normalidade (QI <70 2="" anos="" as="" combinado="" crian="" de="" desenvolvimento="" em="" idade="" menores="" no="" ou="" p="" retardo="" significativo="">
2. Pelo menos dois desvios padrão abaixo da norma em pelo menos três das seguintes áreas ou em pelo menos duas dessas áreas em combinação com epilepsia: discurso; habilidades motoras finas; percepção visuoespacial ou habilidades construtivas espaciais; capacidade de aprendizagem; funções executivas; habilidades aritméticas; atenção; habilidades ou comportamento social.
Recomendação 6Para o cumprimento do critério “anormalidades estruturais do SNC”, a seguinte anormalidade, adaptada à idade gestacional, idade e sexo, deve ser documentada a qualquer momento:
Microcefalia ≤ percentil 10 / ≤ percentil 3.
Recomendação 7Se houver anormalidades nas três outras categorias de diagnóstico, a SAF deve ser diagnosticada mesmo que o consumo de álcool pela mãe durante a gravidez não seja confirmado.
Legenda: IMC – índice de massa corporal; QI – quociente de inteligência; SAF – síndrome alcóolica fetal; SNC – sistema nervoso central. Fonte: Adaptado de LANDGRAF et al. (2013).
Complicações
Existe uma ampla gama de complicações associadas à SAF – Quadro 3.
Quadro 3: Complicações associadas à SAF
Déficits psicológicosHiperatividade
Déficits de atenção – atenção sustentada e focada
Dificuldades de planejamento
Dificuldades de aprendizagem / memória
QI mais baixo – dificuldade de linguagem receptiva, de processamento verbal e para resolver problemas aritméticos
Dificuldades de relacionamento
Deficiências secundáriasProblemas psiquiátricos
Abandono da escola
Conflitos com a lei
Confinamento
Comportamentos sexuais inadequados
Alcoolismo/uso de drogas
Legenda: QI – quociente de inteligência; SAF – síndrome alcoólica fetal. Fonte: Adaptado de GUPTA, GUPTA E SHIRASAKA (2016).

Prevenção e tratamento da SAF

Os Centers for Disease Control and Prevention (Centros de Controle e Prevenção de Doenças), a American Academy of Family Physicians (Academia Americana de Médicos de Família), a American Academy of Pediatrics (Academia Americana de Pediatria) e o American Congress of Obstetricians and Gynecologists (Congresso Americano de Obstetras e Ginecologistas) não reconhecem uma quantidade segura de consumo de álcool durante a gravidez e recomendam a abstinência total. Segundo Denny, Coles e Blitz (2017), embora muitas mulheres se abstenham de álcool quando descobrem que estão grávidas, algumas consomem álcool antes de descobrir. A contracepção deve ser oferecida a mulheres em idade fértil que bebem; se elas desejam engravidar, recomenda-se a abstinência do álcool. Lima (2008) é bastante claro: “Se beber, não engravide; se engravidar, não beba”.
O Congresso Americano de Obstetras e Ginecologistas recomenda a triagem de mulheres no primeiro trimestre para o uso de álcool, e as diretrizes canadenses recomendam a triagem de todas as mulheres grávidas. Uma ferramenta de triagem útil é o TACER-3, que identifica mulheres cuja ato de beber pode colocar seu feto em risco de TEAF. Se o uso de álcool na gravidez for identificado, os médicos devem recomendar a interrupção e oferecer intervenções em grupo, como Alcoólicos Anônimos e centros de reabilitação de álcool. Intervenções que incluem o parceiro da paciente melhoram os resultados relacionados à TEAF e devem incluir a avaliação da compreensão materna sobre comportamentos saudáveis durante a gravidez, ajudar a mãe a estabelecer metas para abstinência do álcool, planejar comportamentos alternativos para quando surgir a tentação de beber e convidar o parceiro para encontrar métodos que apoiem a abstinência alcoólica materna.
Em recente artigo publicado na revista The Lancet Neurology, Wozniak, Riley e Charness (2019) descrevem que as intervenções para TEAF são multifacetadas. A abordagem acomoda o perfil específico de necessidades de um indivíduo (por exemplo, comportamental, cognitivo e adaptativo), de maneira semelhante à abordagem personalizada usada para outros distúrbios do desenvolvimento, como deficiência intelectual ou transtorno do espectro autista. De acordo com os autores, para crianças e adolescentes com TEAF, as intervenções podem incluir treinamento e gerenciamento de comportamento para os pais, treinamento computadorizado da atenção, terapia de controle de impulso, educação especial, incluindo alfabetização e treinamento em matemática e desenvolvimento de habilidades sociais. Já em adultos, os autores destacam que, infelizmente, há baixa disponibilidade de serviços em comparação com os disponíveis para crianças, incluindo escassez de avaliação abrangente, triagem e tratamento de abuso de substâncias, psicoterapia, prevenção de suicídio, assistência ao emprego, assistência à moradia e apoio à família ou aos pais.
Não existem tratamentos medicamentosos específicos para indivíduos com TEAF. Alguns clínicos costumam usar combinações de inibidores de recaptação de dopamina, norepinefrina ou serotonina e antagonistas do receptor de serotonina, entre outros medicamentos, para o tratamento de condições concorrentes, como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, distúrbios do controle de impulsos, agressões e transtornos do humor.
Para Manriquez e colaboradores (2019), triagem, intervenção breve e encaminhamento para tratamento (screening, brief intervention and referral to treatment – SBIRT) é uma prática baseada em evidências usada para identificar, reduzir e prevenir o uso problemático, abuso e dependência de álcool e drogas ilícitas. O SBIRT consiste em três componentes principais: triagem na qual um profissional de saúde avalia os pacientes quanto a comportamentos de risco para o uso de substâncias, usando uma ferramenta de triagem padronizada; intervenções breves mostrando comportamentos arriscados de uso de substâncias em um curto espaço de tempo, com conversa que fornece feedback e conselhos; encaminhamento para tratamento que pode ser uma terapia breve ou um tratamento mais abrangente para pacientes com necessidade de serviços adicionais.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou a campanha Gravidez sem Álcool. Para mais informações, basta acessar este link.
Autor:
Referências bibliográficas: 
  • SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. 9 de setembro: SBP alerta para o Dia de Prevenção da Síndrome Alcoólica Fetal. 2019. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/9-de-setembro-sbp-alerta-para-o-dia-de-prevencao-da-sindrome-alcoolica-fetal/. Acesso em: 04 de set. 2019;
  • GUPTA, K. K.; GUPTA, V. K.; SHIRASAKA, T. An Update on Fetal Alcohol Syndrome-Pathogenesis, Risks, and Treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2016 Aug;40(8):1594-602;
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Fetal alcohol syndrome: dashed hopes, damaged lives. 2011. Disponível em: https://www.who.int/bulletin/volumes/89/6/11-020611/en/. Acesso em: 04 de set. 2019;
  • AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders fifth Edition (DSM 5). Washington: American Psychiatric Association, 2013;
  • CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Basics about FASDs. 2019. Disponível em: https://www.cdc.gov/ncbddd/fasd/facts.html. Acesso em: 05 de set. 2019;
  • POPOVA, S. et al. Estimation of national, regional, and global prevalence of alcohol use during pregnancy and fetal alcohol syndrome: a systematic review and meta-analysis. The Lancet, v.5, p.e290-299, 2017;
  • BAPTISTA, F. H et al . Prevalência e fatores associados ao consumo de álcool durante a gravidez. Rev Bras Saúde Mater Infant, v.17, n.2, p.271-279, 2017;
  • MENDONÇA, G. R. F.; CUNALI, V. C. A.; MENDONÇA, D. S. O. Síndrome alcoólica fetal – Relato de caso clínico. Resid Pediatr, v.4, n.3, p.103-105, 2014;
  • LANDGRAF, M. N. et al. Clinical practice guideline: The Diagnosis of Fetal Alcohol Syndrome. Dtsch Arztebl, v.110, n.42, p.703-710, 2013;
  • DENNY, L.; COLES, S.; BLITZ, R. Fetal Alcohol Syndrome and Fetal Alcohol Spectrum Disorders. Am Fam Physician, v.96, n.8, p.515-522, 2017;
  • LIMA, J. M. B. Álcool e gravidez. Síndrome Alcoólica Fetal (SAF). Rio de Janeiro: MedBook, 2008;
  • WOZNIAK, J. R.; RILEY, E. P.; CHARNESS, M. E. Clinical presentation, diagnosis, and management of fetal alcohol spectrum disorder. Lancet Neurol, v.18, n.8, p.760-770, 2019;
  • MANRIQUEZ, M. et al. Fetal alcohol spectrum disorder prevention program: SBIRT’s role in averting fetal alcohol spectrum disorders. Birth Defects Res, v.111, n.12, p.829-834, 2019.

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