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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

SÍNDROME DA AUTOCERVEJARIA!

Inexplicavelmente embriagado: um caso de doença subdiagnosticada?

Michelle E. Grady

    (Imagem ilustrativa)

Um homem de 46 anos de idade foi parado pela polícia por suspeita de embriaguez ao volante na Carolina do Norte, Estados Unidos, e negou veemente ter consumido bebidas alcoólicas. Ao se recusar a fazer o bafômetro, ele foi hospitalizado e então os médicos confirmaram o que a polícia suspeitava: seu nível de álcool no sangue era 0,20 (duas vezes e meia o limite legal do estado). Ele foi acusado de dirigir sob o efeito de entorpecentes.

Durante um ano inteiro após a sua prisão, a causa da sua "intoxicação" permaneceu um mistério. Foi só quando sua tia sua ficou sabendo de um caso semelhante, que foi tratado com sucesso em uma clínica de Ohio, que ele entendeu o que estava acontecendo – ele tinha a síndrome da autocervejaria (SAC).

Também conhecida como síndrome da fermentação intestinal, a síndrome da autocervejaria é um quadro gastrointestinal raramente diagnosticado que faz com que os pacientes pareçam estar bêbados e sofram todas as consequências clínicas e sociais do alcoolismo.

"A síndrome da autocervejaria ocorre quando os carboidratos ingeridos são convertidos em álcool por fungos no trato gastrointestinal", disse ao Medscape o Dr. Fahad Malik, médico que publicou o relato de caso no periódico BMJ Open Gastroenterology enquanto ainda era residente no Richmond University Medical Center, nos EUA.

Com o incentivo de sua tia, o paciente procurou atendimento na clínica de Ohio, onde fez hemograma completo, bioquímica, sorologias e exame de urina, todos normais.

No entanto, o exame de fezes revelou a presença de duas cepas da levedura Saccharomyces cerevisiae e Saccharomyces boulardii , comumente usadas na vinificação, panificação e fermentação da cerveja.

Para confirmar o diagnóstico de síndrome da autocervejaria, o paciente recebeu uma refeição de carboidratos e os médicos monitoraram seus níveis séricos de álcool, que após oito horas, atingiram 57 mg/dL. Ele foi tratado com antifúngicos contra Saccharomyces nas suas fezes e teve alta com uma dieta rigorosa sem carboidratos, junto com suplementos especiais, como multivitamínicos e probióticos, mas sem outros antifúngicos.

Os probióticos, disse Dr. Fahad, inibem por competição as bactérias e os fungos prejudiciais, mas atualmente há evidências mostrando que são úteis na síndrome da autocervejaria.

Embora o paciente tenha aderido ao esquema prescrito, após algumas semanas sem sintomas voltou a ter "crises" intermitentes. Em um caso de embriaguez, ele caiu e bateu a cabeça, causando sangramento intracraniano que resultou na sua transferência para um centro de neurocirurgia. Durante a internação hospitalar, seus níveis séricos de álcool variaram de 50 mg/dL a 400 mg/dL.

Culpa dos antibióticos?

Desanimado com a persistência dos seus sintomas, o paciente procurou apoio em um fórum on-line. Foi lá que ele leu sobre o Dr. Fahad e o Dr. Prasanna Wickremesinghe, médico gastroenterologista (e colega de Dr. Fahad no Richmond MC), que tinham tratado um caso complicado, muito semelhante, de síndrome da autocervejaria. O paciente entrou em contato com os dois médicos e eles o avaliaram.

"Fomos de A a Z com o paciente, porque estávamos tentando procurar coisas semelhantes na anamnese – queríamos saber exatamente quando tudo começou e entender quando ele começou a sentir embotamento mental", disse Dr. Fahad.

Após conversar com o paciente, os Drs. Fahad e Prasanna rastrearam seus sinais e sintomas iniciais até um episódio de uso de antibiótico em 2011 (250 mg de cefalexina oral três vezes ao dia por três semanas) prescrito para uma lesão traumática do polegar com complicações.

Cerca de uma semana depois de terminar o antibiótico, ele apresentou alterações comportamentais visíveis, como depressão, embotamento mental e explosões de agressividade – todas muito atípicas para ele.

Ele procurou seu médico do atendimento primário em 2014 para se tratar, o que resultou em um encaminhamento para a psiquiatria, que o tratou com lorazepam fluoxetina. O paciente revelou que era previamente saudável, sem história clínica ou psiquiátrica significativa.

O Dr. Fahad acredita que o antibiótico prescrito há tantos anos seja o responsável. "Nossa hipótese era que o antibiótico tenha alterado seu microbioma intestinal e possibilitado a colonização pelos fungos", disse o médico.

Como não há nenhum critério diagnóstico comprovado ou esquema terapêutico para síndrome da autocervejaria, os Drs. Fahad e Prasanna criaram seu próprio protocolo.

O diagnóstico foi feito com um exame padronizado de exposição aos carboidratos versus a ingesta de uma refeição contendo carboidratos, no qual deram ao paciente 200 g de glicose por via oral após jejum durante a noite e coletaram sangue em intervalos regulares de 0, ½, 1, 2, 4, 8, 16 e 24 horas para dosar os níveis séricos de glicose e de álcool.

"Depois disso, era necessário isolar os fungos, examinando as secreções intestinais por meio de endoscopia alta e baixa", disse Dr. Prasanna. Nas culturas para fungos das secreções altas do intestino delgado e do ceco cresceram Candida albicans C. parapsilosis.

Os dois fungos eram sensíveis aos azólicos e os médicos prescreveram150 mg de itraconazol oral por dia como tratamento inicial. Após 10 dias, seus sintomas não melhoraram, de modo que a dose foi aumentada para 200 mg/dia, e o paciente tornou-se "completamente assintomático".

"Não tínhamos nada para indicar o caminho. Não sabíamos quanto tempo devíamos tratar o paciente, era realmente apenas um processo de tentativa e erro", disse o Dr. Fahad. Os médicos pediram ao paciente para monitorar os níveis respiratórios de álcool duas vezes por dia durante o tratamento e comunicar imediatamente qualquer aumento. Com o passar do tempo, ele também foi tratado com vários probióticos para ajudar a normalizar sua flora intestinal.

Doença subdiagnosticada?

No momento da publicação do estudo de caso, no verão de 2019, o paciente estava assintomático há 18 meses e pôde retomar uma alimentação normal, mas ainda verificava os níveis respiratórios de álcool de tempos em tempos.

"Antes do caso deste paciente, pesquisei toda a literatura e encontrei somente alguns casos de síndrome da autocervejaria", disse Dr. Fahad.

No entanto, acrescentou, após a publicação deste relato de caso, outros 10 pacientes o procuraram com história semelhante de uso de antibióticos e com os mesmos sintomas. Isto, disse Dr. Fahad, é "significativo" e sugere que a síndrome da autocervejaria seja muito mais comum do que pensávamos.

Os médicos também observaram que, até onde eles sabem, este é o primeiro relato de exposição a antibióticos deflagrando a síndrome da autocervejaria.

"O que tentamos fazer foi criar um protocolo para identificar esses pacientes, confirmar o diagnóstico e tratar durante um tempo suficiente", disse Dr. Prasanna. "Também queríamos informar outros médicos que isso pode funcionar como uma forma padronizada de tratar esses pacientes, e promover novos estudos mais aprofundados", acrescentou Dr. Fahad, que destacou que o papel dos probióticos na síndrome da autocervejaria ainda precisa ser estudado.

Os Drs. Fahad e Prasanna salientaram que os médicos devem estar cientes de que alterações do humor, embotamento cerebral e delírio em pacientes que negam ingestão de bebidas alcoólicas podem ser os primeiros sinais e sintomas da síndrome da autocervejaria.

O Dr. Prasanna disse que, desde que o estudo de caso foi publicado, ele e o Dr. Fahad receberam perguntas do mundo inteiro. "É inacreditável o interesse despertado pelo artigo, então se tivermos feito a comunidade médica e a população geral tomar ciência desse quadro e de como tratá-lo, fizemos algo importante para a medicina", disse o médico.

https://portugues.medscape.com/verartigo/6505883?src=WNL_ptmdpls_210201_mscpedit_gen&uac=163330CR&impID=3166236&faf=1

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