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Em novembro de 2006, a morte do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko em um hospital de Londres tinha todas as marcas de um assassinato da Guerra Fria. Apesar da intriga, o veneno que o matou, um isótopo radioativo raro, o polônio-210, é bem mais difundido que imaginamos: pessoas no mundo todo fumam quase 6 trilhões de cigarros por ano, e cada um deles manda uma pequena quantidade desse elemento para os pulmões. Tragada a tragada, o veneno se acumula em quantidade equivalente a 300 raios X de tórax por ano para uma pessoa que fuma um maço e meio por dia.
Apesar de o polônio não ser o principal carcinógeno na fumaça do cigarro, pode causar milhares de mortes por ano apenas nos Estados Unidos. E o que o diferencia é que essas mortes poderiam ser evitadas por medidas simples. A indústria do tabaco sabe da presença do polônio nos cigarros há quase 50 anos. Pesquisando os documentos internos da indústria tabagista, descobri que os fabricantes até desenvolveram processos que cortariam dramaticamente as concentrações desse isótopo. Mas escolheram conscientemente não tomar qualquer iniciativa e manter as pesquisas em segredo. Consequentemente, os cigarros contêm tanto polônio hoje quanto há meio século.
Mas esta situação pode estar a ponto de mudar. Em junho de 2009, o presidente americano, Barack Obama, assinou a Lei de Prevenção ao Fumo em Família e Controle do Tabaco. A legislação traz pela primeira vez o tabaco para a jurisdição da Food and Drug Administration (FDA), permitindo à agência regular certos componentes dos cigarros. Forçar a indústria a finalmente remover o polônio seria uma das maneiras mais diretas de torná-los menos mortíferos.
A primeira pista de que o polônio-210 estava chegando aos pulmões dos fumantes veio quase por acaso. No início da década de 60, os efeitos da radiação na saúde, e em particular do decaimento radioativo, estavam presentes na mente dos cientistas – assim como na da maioria das outras pessoas. Na época, a radioquímica Vilma R. Hunt e seus colegas da Harvard School of Public Health desenvolviam uma técnica para medir níveis muito baixos de rádio e polônio, os dois elementos descobertos por Pierre e Marie Curie em 1898. Ela conta que, em um dia de 1964, estava passando os olhos pelo laboratório quando eles pousaram nas cinzas do cigarro de um colega. Por curiosidade, ela decidiu testar as cinzas com sua nova técnica.
Quando Vilma observou os resultados, ficou surpresa por não encontrar sinais de polônio. Concentrações residuais de isótopos radioativos são comuns no ambiente e contribuem para a radiação de fundo natural. Nenhum outro material orgânico, incluindo as plantas, dera um resultado negativo para o polônio na presença do rádio. Mas na temperatura do tabaco em brasa, o polônio se transforma em vapor. Então, ela subitamente percebeu que o polônio que faltava deveria ter virado fumaça! E isso significava que os fumantes o inalariam diretamente para os pulmões.
Corridas ao hospital
Junto com Edward P. Radford, seu colega de Harvard, Vilma Hunt publicou a descoberta – com medições diretas do polônio na fumaça do cigarro – na revista Science. Logo outros, em Harvard, começaram a estudar o polônio tanto nos cigarros quanto nos pulmões dos fumantes. Em 1965, o radiologista e médico John B. Little examinou o tecido pulmonar de fumantes em busca de sinais de polônio. A tarefa não foi fácil. Conseguir amostras de tecidos vivos teria sido invasivo demais, então ele teve de trabalhar com cadáveres. O problema é que o revestimento mucoso do pulmão decai duas ou três horas após a morte. Ele deveria extraí-lo logo após a morte, o que envolvia várias corridas ao hospital em diferentEs horas do dia e da noite. Little conseguiu demonstrar que o polônio realmente se acumulava em áreas específicas do pulmão. Por causa da forma com que nossas vias aéreas se ramificam nos brônquios, bronquíolos e alvéolos, os radioisótopos se concentram nos pontos de bifurcação. Ali, eles formam focos de radioatividade, emitindo partículas alfa.
Nos dez anos seguintes, os cientistas continuaram a pesquisar o polônio na fumaça dos cigarros e o modo com que ele chega à planta de tabaco em si – e, portanto, em que estágio do processo de manufatura do cigarro ele pode ser retirado de modo mais eficiente.
O polônio-210 é produto do decaimento do chumbo-210. No artigo de 1964, Radford e Hunt especularam sobre duas possibilidades: ou os produtos do decaimento do radônio-222 natural na atmosfera, que incluem o chumbo-210, se depositavam nas folhas, ou o chumbo-210 do solo fertilizado era absorvido pelas raízes da planta. Como se verificou mais tarde, ambas estavam corretas.
Pesquisadores do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) verificaram a questão do polônio nos fertilizantes. Um experimento de 1966, feito pelo USDA e pela Comissão de Energia Atômica, testou dois tipos diferentes de fertilizantes, um “superfosfato” comercial e uma mistura especial feita de fosfato de cálcio quimicamente puro. As diferenças foram notáveis. O fertilizante comercial tinha cerca de 13 vezes mais rádio-226 que a mistura especial, resultando em quase sete vezes mais polônio nas folhas. Edward Martell, do National Center for Atmospheric Research (Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas), em Boulder, Colorado, retomou a questão em 1974. Ele sugeriu que solos contendo fertilizantes de fosfato ricos em urânio liberariam radônio-222 na atmosfera, levando sua concentração para níveis acima dos normais. O radônio decairia para chumbo-210, que se depositaria nas plantas em crescimento, aderindo aos milhares de pequenos pelos chamados tricomas que cobrem as folhas de tabaco.
Assim como o grupo de Harvard, Martell também estava preocupado com o acúmulo de polônio-210 em certas áreas do pulmão. Já era aceito havia algum tempo que a exposição à radiação dos produtos do decaimento do radônio era a principal causa do aumento do risco de câncer nos mineradores de urânio. Assim, ele argumentou que a exposição crônica dos fumantes a doses baixas e concentradas de polônio-210 podia ser a principal causa de câncer de pulmão e talvez – como sugeriria depois – também de outros tipos de câncer.
Corridas ao hospital
Junto com Edward P. Radford, seu colega de Harvard, Vilma Hunt publicou a descoberta – com medições diretas do polônio na fumaça do cigarro – na revista Science. Logo outros, em Harvard, começaram a estudar o polônio tanto nos cigarros quanto nos pulmões dos fumantes. Em 1965, o radiologista e médico John B. Little examinou o tecido pulmonar de fumantes em busca de sinais de polônio. A tarefa não foi fácil. Conseguir amostras de tecidos vivos teria sido invasivo demais, então ele teve de trabalhar com cadáveres. O problema é que o revestimento mucoso do pulmão decai duas ou três horas após a morte. Ele deveria extraí-lo logo após a morte, o que envolvia várias corridas ao hospital em diferentes horas do dia e da noite. Little conseguiu demonstrar que o polônio realmente se acumulava em áreas específicas do pulmão. Por causa da forma com que nossas vias aéreas se ramificam nos brônquios, bronquíolos e alvéolos, os radioisótopos se concentram nos pontos de bifurcação. Ali, eles formam focos de radioatividade, emitindo partículas alfa.
Nos dez anos seguintes, os cientistas continuaram a pesquisar o polônio na fumaça dos cigarros e o modo com que ele chega à planta de tabaco em si – e, portanto, em que estágio do processo de manufatura do cigarro ele pode ser retirado de modo mais eficiente.
O polônio-210 é produto do decaimento do chumbo-210. No artigo de 1964, Radford e Hunt especularam sobre duas possibilidades: ou os produtos do decaimento do radônio-222 natural na atmosfera, que incluem o chumbo-210, se depositavam nas folhas, ou o chumbo-210 do solo fertilizado era absorvido pelas raízes da planta. Como se verificou mais tarde, ambas estavam corretas.
Pesquisadores do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) verificaram a questão do polônio nos fertilizantes. Um experimento de 1966, feito pelo USDA e pela Comissão de Energia Atômica, testou dois tipos diferentes de fertilizantes, um “superfosfato” comercial e uma mistura especial feita de fosfato de cálcio quimicamente puro. As diferenças foram notáveis. O fertilizante comercial tinha cerca de 13 vezes mais rádio-226 que a mistura especial, resultando em quase sete vezes mais polônio nas folhas. Edward Martell, do National Center for Atmospheric Research (Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas), em Boulder, Colorado, retomou a questão em 1974. Ele sugeriu que solos contendo fertilizantes de fosfato ricos em urânio liberariam radônio-222 na atmosfera, levando sua concentração para níveis acima dos normais. O radônio decairia para chumbo-210, que se depositaria nas plantas em crescimento, aderindo aos milhares de pequenos pelos chamados tricomas que cobrem as folhas de tabaco.
Assim como o grupo de Harvard, Martell também estava preocupado com o acúmulo de polônio-210 em certas áreas do pulmão. Já era aceito havia algum tempo que a exposição à radiação dos produtos do decaimento do radônio era a principal causa do aumento do risco de câncer nos mineradores de urânio. Assim, ele argumentou que a exposição crônica dos fumantes a doses baixas e concentradas de polônio-210 podia ser a principal causa de câncer de pulmão e talvez – como sugeriria depois – também de outros tipos de câncer.
Assim como no caso dos mineiros, o perigo não viria com uma dose alta em um dado momento, mas com a exposição contínua a doses baixas por um período extenso. Um fumante estoca seu suprimento de polônio a cada trago; portanto, a alta exposição associada a uma vida inteira de fumo lhe traria risco de câncer, apesar da dosagem relativamente baixa de polônio- 210 por cigarro. Em 1974, após introduzir polônio na traqueia de ratos, Litlle e um colega seu de Harvard, William O’Toole, puderam confirmar a hipótese: 94% dos ratos no grupo de exposição mais alta desenvolveram tumores de pulmão com doses tão pequenas que seus tecidos não mostravam inflamações.
Desde então, é claro, outros componentes da fumaça do cigarro também se mostraram carcinógenos potentes, e hoje a maioria dos especialistas provavelmente diria que os principais são compostos como hidrocarbonetos policíclicos aromáticos e nitrosaminas. Ainda assim, estimativas conservadoras baseadas no risco de exposição à radiação sugerem que o polônio-210 pode ser responsável por 2% dos cânceres de pulmão induzidos pelo fumo, o que significa milhares de mortes por ano apenas nos Estados Unidos. Alguns especialistas apontam que os efeitos do dano pela radiação e outros carcinógenos provavelmente exacerbam uns aos outros. Para a indústria do tabaco, o polônio parecia perigoso o bastante para exigir estudos extensivos.
“SEM VANTAGENS COMERCIAIS ”
Em contraste com os cientistas externos, os pesquisadores da indústria nunca publicaram seus estudos sobre o polônio nem divulgaram a existência deles. Mas nos anos 90 julgamentos históricos provocados por 46 estados americanos contra a indústria forçaram os fabricantes a admitir que o fumo é perigoso e cria dependência, o que resultou na liberação de milhões de documentos internos. Milhares deles mostravam que o polônio havia sido extensamente debatido dentro da indústria por muito tempo, até nos escalões mais altos.
O artigo original de Radford e Vilma apareceu poucos dias após o aviso do chefe do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos sobre os riscos do fumo expedido em 11 de janeiro de 1964. Imediatamente após a publicação desses dois documentos, memorandos internos mostram que os fabricantes começaram a se preocupar, porque poderiam enfrentar um desastre de relações públicas caso viesse a público o que sabiam sobre o polônio. Ciente do risco, a indústria logo começou a direcionar recursos humanos e financeiros para o desenvolvimento de programas internos de pesquisas sobre o polônio, feitos a portas fechadas.
Em 1977, por exemplo, pesquisadores da Philip Morris completaram um rascunho de artigo chamado “Ocorrência natural de produtos do decaimento do Radônio-222 no tabaco e condensado de fumaça”, que os autores queriam enviar à revista Science. O diretor de desenvolvimento de produtos enfatizou em um memorando de 1978 para outro cientista que ele tinha medo de publicá-lo. Esse cientista respondeu: “Ele tem o potencial de acordar um gigante adormecido. O assunto é barulhento e não acho que devamos fornecer dados”. O que preocupava o departamento legal da Philip Morris era que, apesar dos números diferentes, o artigo essencialmente concordava com a pesquisa publicada: há polônio no tabaco, e ele é perigoso. Em meados de julho, conforme sugestão do departamento jurídico, o texto não teve aprovação para ser publicado.
Os fabricantes de cigarro, no entanto, continuavam a monitorar as pesquisas externas sobre o assunto e a explorar soluções potenciais para o problema do polônio. Eles debatiam os prós e os contras de diversas formas de reduzir o polônio na fumaça do cigarro, entre elas a adição de materiais ao tabaco que reagissem com o chumbo e o polônio para evitar sua transferência para a fumaça e o desenvolvimento de um filtro que bloqueasse o vapor de polônio. Outra opção direta, que se seguiu à pesquisa de Martell nos anos 70, era lavar as folhas de tabaco com uma solução diluída de peróxido de hidrogênio. Outras ideias incluíam o uso de fertilizantes com limite de produtos do decaimento do urânio-238 e a remoção dos tricomas coletores de chumbo das folhas curadas. “Chegamos até a tentar modificar geneticamente a planta de tabaco” para que as folhas ficassem lisas, diz William A. Farone, ex-diretor de pesquisa aplicada da Philip Morris que mais tarde virou crítico das práticas da indústria e hoje trabalha como consultor do FDA.
Em 1975, o cientista do FDA T. C. Tso estimou que entre 30% e 50% do polônio poderia ser facilmente removido do fertilizante e que a lavagem eliminaria mais 25%. Adicionando a isso os efeitos de um filtro, o polônio do tabaco poderia ter sido quase completamente eliminado. Mas, como dizia um memorando de R. J. Reynolds, “a remoção desses materiais não traria vantagens comerciais”.
O polônio poderia ser um excelente primeiro “veneno” a ser banido do tabaco. É um único isótopo, em vez de um ingrediente complexo do fumo. Outros, como o alcatrão e o monóxido de carbono, são difíceis de tirar da fumaça, mas o polônio, não. As quatro décadas de pesquisas da indústria podem dar ao FDA um bom começo para obter resultados concretos. Além disso, alguns dos mesmos passos que reduziriam as concentrações de polônio na fumaça – como a lavagem das folhas de tabaco – também poderiam ajudar a remover metais tóxicos como chumbo, arsênico e cádmio. Esse é precisamente o tipo de regulação e mudança que o FDA tem agora o poder de promover.
A Organização Mundial da Saúde deixou claro que o fumo é a causa de morte mais evitável. Ela estima que 1,3 milhão de pessoas morram de câncer no pulmão no mundo todo a cada ano, 90% por causa do fumo. [No Brasil, mais de 200 mil pessoas são vítimas dos cigarros anualmente, segundo dados do Ministério da Saúde. Diariamente, 552 pessoas morrem no Brasil vitimadas pelo tabagismo.]
Se o polônio tivesse sido reduzido por métodos conhecidos pela indústria, milhares dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Os advogados da indústria escolheram conscientemente não agir sobre os resultados das pesquisas de seus próprios cientistas. Mas são os consumidores que devem viver com essa decisão. E morrer por causa dela.
TEXTO DE: Brianna Rego
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