Andando em círculos | |||
Usado para tratar dificuldades de concentração, o metilfenidato reforça a fixação de eventos traumáticos na memória. | |||
por Sidarta Ribeiro | |||
No campo das
drogas lícitas, o que dizer do metilfenidato, uma das mais ardentes febres
farmacológicas de nossos tempos? Sintetizado pela primeira vez em 1944, esse
psicoestimulante tem uso aprovado para o tratamento do transtorno do déficit de
atenção com hiperatividade (TDAH), da narcolepsia e de outros distúrbios. Ele
provoca a inibição da recaptação de dopamina e noradrenalina, aumentando os
níveis desses neurotransmissores na fenda sináptica de modo semelhante ao efeito
da cocaína e das anfetaminas. Entretanto, por agir de forma mais lenta e
duradoura que essas outras drogas, o metilfenidato tem efeitos fisiológicos mais
moderados. Hoje milhões de pacientes em todo o planeta, principalmente uma
crescente população de jovens e crianças com baixo rendimento escolar,
dificuldades de concentração e outros sintomas relacionados ao TDAH, são
tratados com essa substância. O transtorno chega a ser chamado de “doença da mãe
ruim”, por ser mais comum em lares desagregados.
À medida que o
diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade se generaliza, chegando a
atingir assombrosos 10% da população infantil em algumas comunidades dos Estados
Unidos, surgem questionamentos sobre os efeitos colaterais do metilfenidato.
Pistas importantes foram apreendidas de um domínio bem distinto da sala de aula:
a guerra. Em cinco anos, o uso de metilfenidato por tropas americanas cresceu
1.000%. Um estudo de 289 mil veteranos dos conflitos militares no Iraque e
Afeganistão mostrou que a incidência do transtorno de estresse pós-traumático
(TEPT) cresceu de 0,2% para 22% de 2002 até 2008. Curiosamente, os casos mais
graves ocorreram em soldados que utilizaram metilfenidato para aumentar o alerta
durante as atividades de combate. Isso acontece porque os neurotransmissores
modulados positivamente pelo medicamento fortalecem a aquisição e consolidação
de memórias, ou seja, eventos violentos da vivência bélica são gravados
profundamente no cérebro dos usuários da substância. Pela mesma razão, remédios
que bloqueiam os efeitos da noradrenalina e da dopamina têm efeito terapêutico
para o TEPT, especialmente quando administrados poucas horas depois da aquisição
de memórias traumáticas.
Se o metilfenidato potencializa a fixação do
evento traumático, aprofundando a cicatriz mnemônica, ele funciona como um
poderoso agente que reforça a marca dolorosa. Transposto para o cotidiano onde
imperam a anomia da televisão e o redemoinho das informações oferecidas pela
internet, é de se esperar que esse fármaco tenha apenas efeitos benéficos sobre
o aprendizado? Ou existe o perigo de um círculo vicioso, no qual lares
desagregados geram filhos desajustados que, por sua vez, se tornam alvo de
receitas médicas que aprofundam neuroses? Nesse pesadelo iatrogênico, a
psicofarmacologia acabará servindo aos psicanalistas do futuro um prato cheio de
problemas para tratar?
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sábado, 23 de junho de 2012
ANDANDO EM CÍRCULOS
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