Grupo de poderosos liderou a Conjuração Baiana de 1798
Os livros didáticos ensinam que a Conjuração Baiana de 1798 foi um movimento de milicianos e escravos pela independência do Brasil. Mas uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP revela que, na verdade, o movimento foi liderado por um grupo de oito grandes poderosos da alta sociedade soteropolitana e motivado pela perda de privilégios e de poder deste grupo.
“Conforme as investigações da Coroa Portuguesa avançaram, o grupo recuou, pois conseguiu manter os privilégios e o poder”, conta a historiadora Patrícia Valim, autora da tese de doutorado que investigou o tema. “Encontramos documentos que mostram que esses poderosos fizeram a “pronta-entrega” de seus escravos à justiça para livrarem-se da acusação de prática sediciosa, o que comprova a participação deles na liderança do movimento”, descreve.
Os alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino, e os soldados Lucas Dantas de Amorim Torres e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga foram enforcados, esquartejados e os corpos expostos, em Salvador, em 8 de novembro de 1799. Já aos oito poderosos, nada aconteceu. Entre eles estavam José Pires de Carvalho e Albuquerque, secretário de Estado e Governo do Brasil e o terceiro homem mais rico da Bahia, e Francisco Vicente Viana, ajudante de ordens do governo local e presidente da província da Bahia, entre 1823-1825.
De acordo com Patrícia, nos últimos 20 anos, diversos historiadores têm colocado em xeque a “versão oficial” do ocorrido. Para realizar a pesquisa, a historiadora analisou documentos em arquivos portugueses e brasileiros, como os autos das devassas (processos de investigação da Coroa), inventários, cartas de autoridades da Bahia, Portugal e das Ilhas de São Tomé e Príncipe (colônia portuguesa e importante ponto comercial onde ocorriam as paradas dos navios negreiros que saíam da Guiné equatorial rumo ao Brasil e que, depois de 1753, ficou sob jurisdição da capitania da Bahia).
Perda de poder e revolta
Desde meados do seculo 18 um grupo de homens muito poderosos da alta sociedade soteropolitana era beneficiado pelas reformas empreendidas pelo Marques de Pombal, primeiro-ministro do reinado de Dom José I (1714-1777), em Portugal.
A situação mudou a partir de 1796. O secretário dos Domínios Ultramarinos, Dom Rodrigo de Souza Coutinho, realizou uma série de reformas modernizantes que contrariava os interesses dos poderosos. “A partir dessas reformas, o grupo se revolta e passa a reivindicar a manutenção e ampliação de seus privilégios políticos e econômicos por meio de ameaças que compunham a cadência da Revolução Francesa de 1789, à época em curso, tais como: fim do absolutismo, livre comércio e implantação de um regime de governo republicano. O grupo se une ao contingente armado da capitania cujas reivindicações eram o aumento do soldo e isonomia nos critérios de ascensão aos postos militares”, explica. O movimento passa a divulgar uma série de 11 boletins manuscritos afixados em prédios públicos de Salvador convocando a população para um levante e, com isso, a Coroa começa a investigar o movimento e descobre a participação dos poderosos.
Por volta de 1796, Antoine René Larcher, comandante de um navio francês, chega a Salvador, onde permanece cerca de um mês convivendo com pessoas da alta sociedade local. Larcher acaba por revelar que Napoleão tinha planos de invadir a Bahia e que a França poderia ajudar com o movimento dos revoltosos.
A historiadora conta que a Bahia representava, para Portugal, um importante pólo político, econômico e social da colônia, junto com a capital, Rio de Janeiro. Segundo a pesquisa revelou, vários documentos da época atestam que havia livre comércio entre a França e São Tomé e Príncipe, sem que houvesse interferência da Coroa ou das autoridades baianas. E, segundo a pesquisadora, o grupo de oito poderosos esteve envolvido em vários conflitos na Bahia, no final do século 18, sendo que alguns estiveram associados direta ou indiretamente em conflitos com as outras colônias de Portugal, inclusive em São Tomé e Príncipe.
Invasão francesa
“A Coroa Portuguesa empreendeu uma série de soluções de compromisso com esse grupo de poderosos”, conta Patrícia, ressaltando que “o principal relaciona-se à política de concessão de territórios com o objetivo de a Coroa manter sua tradicional posição de neutralidade política nos conflitos entre as nações europeias.” Ela conta que, em novembro de 1799, com a ajuda de Dom Fernando José de Portugal e Castro, governador da capitania da Bahia, que atrasou o envio de armas para São Tomé e Príncipe, a França invadiu a ilha de Príncipe sem encontrar nenhuma resistência da Coroa. “Ao ceder a ilha, a Coroa estava estava preservando a Bahia”, explica. No mesmo ano, os quatro homens foram executados.
“Com isso, podemos concluir duas coisas: a elite brasileira sempre se valeu de qualquer mecanismo para se manter no poder. E a outra é que, no Brasil, todo e qualquer exercício político da camada mais pobre da população acaba sendo criminalizado”, finaliza.
A tese de doutorado Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798 foi apresentada em 30 de janeiro de 2013 sob a orientação da professora Vera Ferlini. Patrícia teve bolsa de apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Imagem do boletim manuscrito cedida pela pesquisadora
Imagem da Praça da Piedade: Wikimedia
FONTE: http://www.usp.br/agen/?p=136315Maisinformações: email pvalim@usp.br, com a historiadora Patrícia Valim
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