"O país está imerso num mar de queimadas, mas não há nem cheiro de fumaça na campanha presidencial. Ninguém está tratando disso. Nem Marina Silva.
Nossas orelhas tampouco vão arder, porque nenhum deles está falando de nós. Só alguns rostos ficarão em brasa, diante da empulhação transparente do horário eleitoral.
Já os narizes estão pegando fogo. Placas se acumulam nas mucosas, às vezes com sangue. Acorda-se no meio da noite com as narinas entupidas por falta, e não excesso, de muco. Borrifadores nasais viraram extintores de incêndio de bolso.
Não caia na conversa de que uma massa de ar quente e seco nos impede de respirar em pleno inverno. Sim, o ar está seco. Mas ele está cheirando a quê?
Onde há fumaça, há fogo, ensina o lugar comum. E não é só a combustão interna de veículos movidos a combustíveis fósseis (gasolina, diesel) ou renováveis (etanol, biodiesel). Pastagens, capoeiras e matas virgens estão ardendo --combustível vivo.
Olhe para o céu, de preferência para o horizonte. Não é mera poluição normal ou névoa seca o que se enxerga. São partículas de fuligem que sobrecarregam o ar, produto da queima de matéria vegetal.
O material particulado --poeira, em bom português-- altera o comportamento da radiação luminosa que parte do Sol e chega até as retinas cansadas. Ocorre uma espécie de espalhamento, que favorece os comprimentos de onda da luz que enxergamos como laranjas e vermelhos.
Com o Sol baixo no horizonte, seus raios têm de atravessar uma camada mais espessa de ar e, portanto, encontram mais partículas pelo caminho. Com a fuligem adicional, surgem os pores do sol mascarados de vermelho dos últimos dias. Antes domina uma luminosidade leitosa, que se coagula em tons de creme ao longo da tarde.
Parece bonito, mas é fumaça. Fogo.
Na serra da Mantiqueira, a lua quase cheia alia-se à fuligem para apagar de vez as estrelas. Poucas sobrevivem além do véu de luz diluída. A noite chamuscada se extingue e tisna o orvalho com um odor de cinzas.
Rolos de "smog" se metem pelos vales, transformando os topos de morros em ilhas fantasmagóricas. Aqui e ali, a madrugada se tinge de laranja, como se o sol fosse nascer fora de hora. O clarão lampeja com pontos de luz amarela --é a mata em chamas, quem sabe um pasto que o dono quer ver livre de pragas.
É um ciclo vicioso. No inverno chove menos, e a vegetação seca, tornando-se inflamável. Fazendeiros e sitiantes usam e abusam da tecnologia mais antiga da nação --a coivara do tupi-- para manejar o solo, adubando-o com cinzas.
A poeira lançada na atmosfera pelas labaredas multiplica partículas às quais moléculas de água podem aderir. Aumenta a competição entre núcleos de condensação, e as gotinhas não chegam a crescer o suficiente para deflagrar a precipitação. Chove menos. Tudo resseca.
O aquecimento global só faz acumular combustível para essa bomba incendiária. Nos seus piores momentos, quem se preocupa com o futuro do clima não consegue deixar de pensar na devastação do romance "A Estrada", de Cormac McCarthy, que lhe valeu um Prêmio Pulitzer de ficção.
Pai e filho sem nomes vagam pelas estradas quase desertas --em todos os sentidos-- dos Estados Unidos. Se arrastam a pé em busca do sul e do mar. Parecem os "noias" que emigram da Cracolândia, sem destino, para todo o centro da cidade de São Paulo.
A paisagem está tomada pela lama de neve e cinzas. As árvores, calcinadas, podem cair a qualquer momento sobre suas cabeças. Bandos canibais caçam os sobreviventes de uma hecatombe sem explicação.
"A Estrada" virou filme não menos angustiante do australiano John Hillcoat. Viggo Mortensen se esmera no papel de pai tenaz, mas a fita é de Kodi Smit-McPhee, o menino. Houve quem visse nele um messias, mas parece mais o retrato contraído de uma criança com pouco futuro.
O cenário horrendo lembra um tanto o que vi perto de Querência (MT), nas vizinhanças do rio Tanguro. No final do inverno de 2004, uma "queimada do bem" foi iniciada ali, com método, por estudiosos do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), em 150 hectares de mata. A última fogueira do experimento aconteceu na semana passada.
Retornei ao lugar cinco anos depois. Quase nada mais restava da floresta de transição entre cerrado e floresta amazônica. Já tinha lido "A Estrada".
A mata queimada se torna ainda mais inflamável nos anos seguintes, pois as árvores morrem e as gramíneas penetram onde antes não tinham luz para viver. As chamas se erguem cada vez mais alto, até as copas, detonando tempestades de fogo.
É uma pesquisa científica, mas também uma metáfora do Brasil futuro, se não cuidarmos do próprio nariz.
O país nasceu sob o signo de uma árvore ameaçada de extinção. Um dia ainda lembrará com desgosto que o nome dessa madeira, premonitório, tem algo a ver com brasas e que brasas acabam em cinzas."
MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço.
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