Dois pesos e duas medidas
Clarissa Menezes Homsi
quarta-feira,
29/8/2012
A
Aliança de Controle do Tabagismo promoveu dois estudos, em 20081 e em
20112, em que analisa decisões judiciais em ações contra as duas
maiores empresas de cigarro em atividade no Brasil que, juntas, detêm 90% do
mercado nacional. O que se observou foi a utilização, pelo Judiciário, de
dois pesos e duas medidas na maioria das sentenças e acórdãos examinados.
Estes, infelizmente, têm pendido favoravelmente para as empresas.
A
impressão que se têm é que as decisões teriam sido tomadas de antemão: pela
irresponsabilidade das duas empresas. Os argumentos utilizados dependerão
do caso em análise. Dois exemplos demonstram essa situação:
Artigo
12 do Código de Defesa do Consumidor
A
responsabilidade objetiva prevista no CDC se fundamenta em seu artigo 12. Essa norma
tem por finalidade proteger o consumidor e responsabilizar o fornecedor por
danos sofridos. Sua interpretação deve ser a mais benéfica ao consumidor.
Entretanto, nos casos analisados, esse dispositivo será ou não aplicável na
relação entre fumante e empresas de cigarros a depender do resultado almejado,
qual seja, evitar a condenação da indústria.
O
Judiciário entende que os danos causados pelo tabagismo são hipótese que se
subsume ao artigo 12 do CDC, mas tão somente nos casos em que é possível fazer
incidir o prazo prescricional de cinco anos do artigo 27 do CDC para extinguir a
ação. Para ilustrar cita-se trecho de voto do Ministro Sidney Bennet no RE
782.433-MG:
"Moléstias
que tenham o tabagismo como causa exclusiva ou agravante, são 'danos causados
por fato do produto ou do serviço prestado', cuja ação de indenização de dano
moral é subordinada ao prazo de cinco anos nos termos do art. 27 do Cód. De
Defesa do Consumidor (lei 8078/1990)"
Já
em casos em que não é possível aplicar-se a prescrição, exclui-se a aplicação do
artigo 12, conforme voto do Ministro Luis Felipe Salomão no RE 113.804-RS:
"(N)ão parece possível que o cigarro seja considerado um produto defeituoso,
nos termos do que imaginara o Diploma Consumerista, no § 1º do art.
12".
Há
ainda decisões que aplicam o artigo 12 aos casos de vítimas do tabagismo, mas
para fazer incidir seu parágrafo 3º que exclui a responsabilidade por culpa
exclusiva da vítima3.
Aplicação
retroativa do CDC
O
Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado retroativamente apenas e tão
somente a benefício do consumidor, e nunca para prejudicá-lo.
Surpreendentemente,
entretanto, quando o violador é alguma das duas empresas de cigarros que atuam
no Brasil o cenário se inverte.
No
RE 782.433-MG, a Ministra Nancy Andrighi, em voto vencido, alerta para esse fato
ao criticar o voto relator que fez retroagir o CDC para aplicar a prescrição a
caso cuja ação foi proposta antes de sua vigência:
"Consta
do acórdão (...) que (o
requerente) tomou conhecimento dos prejuízos e do seu causador (...) nos idos
de 1989, portanto, há aproximadamente 14 (quatorze) meses antes da
propositura da ação.(...) A lei 8.078/90 foi publicada no Diário Oficial da
União em 12/9/1990, com uma vacatio legis de 180 (cento e oitenta) dias, cujo
término deu-se em 11/3/1991, data da efetiva entrada em vigor do CDC.
Portanto, o conhecimento do dano e de sua autoria se deu de 01 (um) a 02
(dois) anos antes do CDC entrar em vigor, quando então vigia o CC/16, (...).
Dessa forma, a despeito de se tratar de norma especial, para que se possa
concluir pela incidência, na espécie, do prazo prescricional de 05 (cinco) anos
previsto no art. 27 do CDC, ter-se-á que admitir a aplicação retroativa deste
diploma legal, ainda que, como fez o juiz de primeiro grau, se conte o prazo
tão somente da entrada em vigor da lei.”
Já
o Ministro Massami Uyeda, no RE 851.924-RS, ao decidir sobre valoração da prova,
negou a retroatividade do CDC, o que beneficiaria o consumidor vítima do
tabagismo: as disposições de proteção ao consumo não se fazem presentes
porque os fatos ocorreram antes da vigência do Código de Defesa do
Consumidor
Algo
de muito estranho parece ocorrer quando os réus são uma das duas empresas de
tabaco em atuação no Brasil. Os princípios do ordenamento jurídico nacional
invertem-se e a interpretação lhes é invariavelmente favorável, independente do
caso.
Se
a prova do nexo causal é contundente, apela-se para o livre arbítrio, para a
licitude da atividade ou, até, para a responsabilidade dos pais. Se se impede o
consumidor de produzir prova, a decisão fundamenta-se, justamente, na ausência
de prova contundente do nexo causal. As evidências científicas tão bem
demonstradas e aceitas durante as últimas décadas não são acatadas para
confirmar o nexo causal. Antes ao contrário, são utilizadas para favorecer o
argumento das duas empresas de que os males do tabagismo seriam conhecidos –
pelo consumidor, nunca por elas – há tempos.
Aqui
se abre parênteses para citar a histórica sentença Kessler4,
proferida em ação movida pelo Governo Federal Norte-americano contra nove
transnacionais do tabaco, entre elas empresas das quais as duas brasileiras são
subsidiárias, em que se reconheceu que os réus buscaram proteger-se contra
litígios e regulamentações por meio de (1) supressão e ocultação de pesquisas
científicas, (2) destruição de documentos e (3) uso de instrumentos legais e de
confidencialidade para evitar que outros documentos viessem a público. Essas
estratégias utilizadas em nível global, Brasil incluso, e reconhecidas na
decisão judicial revelam a clara ausência de boa-fé dessas empresas.
As
crescentes dificuldades em se recorrer aos tribunais superiores enfrentadas
pelos litigantes em geral não afetam essas duas empresas que, mesmo em situações
restritas ao reexame de provas, garantem a ida de seus recursos àquelas
instâncias para reverter as fundamentadas e comprovadas decisões condenatórias
de primeiro e segundo graus de jurisdição.
Os
seguintes questionamentos são inevitáveis: não haveria nenhuma situação em que
essas empresas deveriam indenizar as vítimas do tabagismo? O Código de Defesa do
Consumidor não se aplica a elas? Elas não respondem pelos ônus impostos por seus
produtos? Os princípios constitucionais não devem ser utilizados na
interpretação da lei quando tais empresas são parte em ações
judiciais?
O
ordenamento jurídico brasileiro claramente prioriza os direitos fundamentais. O
artigo 5º da Constituição dá o tom para a interpretação das normas nacionais, e
a defesa do consumidor é princípio da mais alta relevância (inciso XXXII). Não é
preciso ser jurista para intuir que as leis são feitas, e devem ser
interpretadas, para protegê-lo e defendê-lo.
O
Código de Defesa do Consumidor, como não poderia deixar de ser, deve ser
interpretado sempre a favor do consumidor, e não contra este. O Código é de
defesa do consumidor e não de defesa do fornecedor. Há uma clara opção do
legislador nesse caso.
As
previsões quanto à responsabilidade civil têm evoluído a ponto de hoje a regra
ser a responsabilidade objetiva, independentemente de culpa, adotando-se
a teoria do risco da atividade. Nesse sentido são os dispositivos do parágrafo
único do artigo 927 e do artigo 931 do Código Civil/2002.
Um
terceiro aspecto que se soma aos anteriores é o conceito de Diálogo das
Fontes introduzido pela Professora Cláudia Lima Marques5. O
ordenamento jurídico é uno, não se pode segregá-lo, e deve ser interpretado como
um sistema, de forma que as normas dialogam para obter-se um resultado que
atenda aos princípios priorizados pela Constituição, quais sejam, os direitos
fundamentais, entre eles, a defesa do consumidor, garantindo que as empresas
assumam os riscos e ônus de sua atividade e produto.
A
simplicidade desse raciocínio, contudo, não tem encontrado ressonância na maior
parte do Judiciário quando se trata de ações indenizatórias contra as duas
maiores empresas de cigarro em atividade no Brasil.
É
chegada a hora de o Poder Judiciário questionar-se sobre o porquê de não se
conseguir condenar definitivamente, em nenhum caso, uma indústria que
reconhecidamente mata 130 mil brasileiros por ano.
__________
1A
Indústria do Tabaco no Poder Judiciário: Pesquisa sobre ações judiciais
indenizatórias promovidas contra a indústria do tabaco: Um retrato da posição do
Poder Judiciário quanto à relação Fumante – Indústria do Tabaco, coordenação
Clarissa Menezes Homsi, Aliança de Controle do Tabagismo, 2008 - clique aqui.
2SALAZAR,
Andrea Lazzarini; GROU, Karina Bozola. Ações Indenizatórias Contra a Indústria
do Tabaco: Estudo de Casos e Jurisprudência, Supervisão ACT, 2011 - clique aqui.
3Fernanda
Nunes Barbosa e Mônica Andreis, O argumento da culpa da vítima como excludente
da responsabilidade civil da indústria do cigarro: proposta de reflexão, in
Revista de Direito do Consumidor - RDC, Ano 21, Vol.82, abr/jun, 2012, pg.
61-83.
4O
Veredito Final: trechos do processo Estados Unidos x Philip Morris, publicação
preparada por Mike Freibert, J.D., em edição de Kerry Cork, J.D. e Maggie
Mahoney J.D. tradução Renata Galhanone. Edição Aliança de Controle do Tabagismo,
2008 - clique aqui.
5Cláudia
Lima Marques et al, Manual de Direito do Consumidor, Editora Revista dos
Tribunais, 2ª tiragem, 2008, p. 87 e ss
*Clarissa
Menezes Homsi é
advogada, coordenadora jurídica da ACTbr - Aliança de Controle do
Tabagismo
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