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sábado, 12 de março de 2011

MÃO DO GATO

O que a sociedade espera da Anvisa são decisões técnicas
para proteger a saúde da nossa população.

Há momentos vem que excesso de democracia atrapalha. Antes que você me interprete mal, leitor, vou descrever o caso a que me refiro.
Imbuída de intenções democráticas, a Anvisa decidiu fazer duas consultas públicas que envolvem a comercialização de cigarros. Segundo a agência, "esse processo contribuirá para a transparência e participação da sociedade e auxiliará a Anvisa na elaboração do texto final do regulamento proposto".
A primeira consulta (número 112) trata da permissão para exibir nos maços os teores de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono e de proibir a adição de aromatizantes e flavorizantes.
A questão dos aditivos está entre as grandes malfeitorias praticadas pela indústria: adicionar aromatizantes para disfarçar o odor da fumaça e flavorizantes para conferir sabor de baunilha, menta, chocolate, morango e outros com a finalidade de encobrir o paladar aversivo do fumo e viciar meninas e meninos em idade mais precoce. Crianças e adolescentes somam 90% dos que começam a fumar.
A questão de imprimir no maço os teores de nicotina, alcatrão e monóxido de carbono é crime ainda mais grave, porque se destina a criar uma sensação falsa de segurança.
Os cigarros "light", "ultralight" ou de "baixos teores" foram lançados nos anos 1960, quando não havia mais como negar a relação entre fumo, câncer, doenças cardiovasculares, pulmonares e dezenas de outras. Para o consumidor a lógica pareceu razoável: se o alcatrão provoca câncer, quanto menos alcatrão, menor o risco. Milhões aderiram às marcas "light".
Os cigarros de "baixos teores" são ainda piores do que os mais fortes. Quem controla a quantidade de nicotina a ser absorvida em cada tragada são os neurônios do fumante.
Se o cigarro é forte, poucas tragadas fornecem a nicotina necessária; quando é fraco, elas se tornam mais profundas e o intervalo entre uma e outra encurta. A fuligem e os 6.000 compostos químicos resultantes da combustão entram em contato mais íntimo e destruidor com os brônquios e alvéolos pulmonares.
A segunda consulta (número 117) procura regulamentar a exposição dos maços nos pontos de venda e o conteúdo das mensagens de advertência.
Proibido o acesso à televisão e aos jornais, os fabricantes investiram pesado na divulgação de material publicitário (displays, cartazes, luminosos etc.) para promover as vendas em locais como padarias, lanchonetes, bancas de jornal e lojas de conveniência.
Em 83% dos estabelecimentos visitados durante uma pesquisa realizada no ano passado pelo DataFolha/Aliança de Controle do Tabagismo, os cigarros estavam expostos junto a balas, chocolates ou doces. Nas padarias esse número chega perto da totalidade.
Como de costume, a indústria reagiu com a mão do gato: mobilizou os setores que defendem seus interesses e os parlamentares financiados por ela.
Na falta de argumentos para justificar o crime continuado de induzir crianças a adquirir a dependência química mais escravizante que a medicina conhece, esses grupos alardeiam que a consulta pública é antidemocrática e autoritária, que exclui o debate e o esclarecimento da população, que irá provocar impactos econômicos gravíssimos para produtores e varejistas, que causará desemprego e abrirá caminho para o contrabando.
Para manter a legislação frouxa como está, chegam ao cinismo de pressionar para que as consultas sejam proibidas.
Vamos inverter o raciocínio deles. Para impedir que os fabricantes continuem a praticar os crimes de acrescentar produtos químicos que tornam o cigarro mais palatável para crianças, de imprimir no rótulo teores de nicotina e alcatrão para fingir que existem cigarros menos nocivos e de expor os maços junto a balas e chocolates nas padarias, seria necessário organizar consultas públicas?
Quando a Anvisa proibiu a exposição de vitaminas nas prateleiras das farmácias, por acaso consultou o público? Se embalagens de vitaminas quase sempre inúteis, porém inócuas para o organismo, não devem ficar expostas ao consumidor desavisado, o maço de cigarro pode?
O que a sociedade espera da Anvisa são decisões técnicas para proteger a saúde da população. Reduzir o consumo de cigarros e o contingente de crianças que se tornará dependente de nicotina pelo resto da vida estão entre elas.
(Fonte: Dráuzio Varella- Folha de São Paulo - 12/03/2011/Rede ACT)

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